Unknown
À porta de um arranha céus ele acende um cigarro, enterra o chapéu na cabeça e puxa para cima a gola da gabardine para proteger o pescoço. Com um cigarro na boca e as mãos nos bolsos passeia-se pela chuva miúdinha da noite à procura de um lugar ou de uma bebida que faça brotar algo da sua mente infértil. Li num dos seus livros que acha que o melhor adubo para a criatividade é o álcool. Acho que ele não sabe o talento que possui, é tão inseguro...
Ele entra num bar com uma luz trémula azulada. Fico cá fora a observá-lo através do vidro. Os empurrões de quem passa na rua ao meu lado não me incomodam, estou demasiado absorvida pela visão dele a tirar o casaco e o chapéu, a passar os dedos pelo cabelo húmido e a sentar-se ao balcão com um copo de whisky à frente.

Ela entra no bar e senta-se num canto, observadora, enquanto uma banda de jazz interpreta Billie Holiday no seu mais Blue Mood. Estremece por estar tão perto dele e pensa "Será que já alguma vez, após todo este tempo, notou em mim?". Após mais de uma hora de hesitações, ganha coragem e senta-se ao lado do escritor, tira um maço da carteira e estende-o com um tímido sorriso desenhado nos pequenos lábios rosados. Ele bamboleia o tronco, desorientado pela bebida e tira um cigarro acendendo-o com um fósforo. Olhou a rapariga, coçou a barba curta e torceu o nariz. Talvez o cabelo dela tivesse demasiado volume, talvez os olhos dela fossem demasiado lunáticos, talvez o seu corpo não fosse demasiado interessante... Facto, é que ele abana a cabeça com um ar trocista e levanta-se para encontrar um lugar sentado noutro sítio.
A rapariga fica petrificada, com os olhos em lágrimas e o sorriso desfeito. Destrói os cigarros apertando-os na mão e deixa-se ficar no mesmo lugar, consumida pela amargura da rejeição.

Depois de mais uma noite sem conseguir acrescentar uma letra ao seu romance , o escritor tira uma nota do bolso, e sem verificar o troco sai para a rua da cidade que nunca dorme. Espera por um táxi que o leve a casa enquanto toca num poste de metal com os dedos o ritmo duma música que ouviu no bar. Um carro pára para o albergar da humidade deixada pela chuva, e quando entra balbucia umas palavras e adormece encostado à janela.

Quando abre os olhos vê areia e água... Está numa praia. Sente os movimentos presos e realiza que está enterrado na areia à beira-mar.
- Mas o que se passa aqui?! Como vim parar dentro deste buraco?! Não consigo mexer o corpo! Oh meu Deus! Que mal fiz eu? Como vim aqui parar?! Socorro! SOCORRO!
Mexendo a cabeça tenta futilmente libertar-se da prisão de areia molhada. Pára quando lhe aparecem uns pés com unhas pintadas à frente da sua cabeça. Os seus olhos seguem um corpo de mulher até uma cara  emoldurada por um cabelo descuidado. Uma cara que lhe é familiar... Engole em seco e arregala os olhos assustado.
- Tu! Tu estás sempre em todo o lado! Tu! Foste tu ontem que... - fica incapaz de continuar a falar paralisado com medo.
Ela senta-se molhando as calças na areia, acaricia o cabelo dele e dá-lhe um beijo forçado algures perto da boca. Respira fundo e olha para o mar.
- Está quase meu amor, está quase. - diz com uma serenidade desconcertante - Até já.

Levanta-se, caminha, e entra dentro de água vestida e sem olhar para trás desaparece no meio das ondas.
Berros perdem-se no ar sem ouvidos para os ouvir. Pedidos de socorro ecoam na praia sem ninguém para os socorrer.
A maré sobe e a cabeça na areia está agora debaixo de água com os olhos abertos e os cabelos a balançarem suavemente ao sabor da ondulação do mar.