Unknown
Lá longe, de onde vêm as fábulas, onde o mar beija raivosamente a terra, onde o vento canta com mil vozes perdidas no tempo, onde as gotas de água dispersas no ar imitam a neve branca. Lá naquele sítio que guia os marinheiros, sentado num imperial banco de rocha, ergue-se o invergável farol habitado por um velho lobo do mar.
Alto, seco, de cabelo branco-alvo farto e ondulado, com um olhar intimidante que brilha como duas safiras; é como um deus depois da tempestade para os navios perdidos. Sempre com um pequeno barco atracado junto do rochedo, rema em marcha de socorro, quando sente urgência no seu nobre coração.
É um homem duro, valente, taciturno, ríspido, mas bem-disposto. No seu âmago vive a tristeza   de quem perdeu tudo o que tinha sem justa causa, mas tem a coragem de encarar a vida sempre com um sorriso.
A sua mulher morreu a dar à luz a uma pequena flor chamada Mar. Com apenas uns dias, o seu débil corpo sem mãe soçobrou numa onda que quase engoliu o velho farol.

Com as mãos nos bolsos, recebe o vento que enche a sua roupa e as rugas da sua pele de sal. De peito aberto contra o mar ufano, que mostra a sua bravura plenipotenciária em rombos constantes, recorda um momento de ternura com a sua mulher. Fecha os olhos e imagina a sua filha já criança, perfeita e incólume, com uma boneca nos braços a sorrir para ele – “anda, vamos jogar à apanhada!”. Encosta-se ao parapeito do topo do farol à espera de uma onda. Num gesto, agarra as gotas de água que trepam mais alto da rebentação e diz – Apanhei-te! – sorrindo.
Já sentiu raiva e ódio ao mar, mas com a idade foi perdendo esses sentimentos dando lugar ao respeito e à compreensão das vicissitudes da vida e à força da natureza.

Na aldeia todos os o olham com estima e consideração. Não é, pois, com espanto que é recebido com sorrisos e braços abertos ao subir a colina, banhado pelos últimos raios de sol depois da tempestade, segurando três peixes graúdos pescados por si. É noite de festa na aldeia, e todos contribuem com o que podem para dar graças à vida.
A filha da padeira deita um olhar lânguido e apaixonado ao velho lobo altivo. Sendo o seu suspiro incurável interrompido por uma cotovelada da mãe risonha:
- Oh filha, pod’esperar até ao final das obras da Santa Engrácia que ele não vai olhar para ti dessa maneira.
Irritada a rapariga, meia na brincadeira responde de nariz empinado:
- Está calada oh pacóvia, qu’eu cá não estava a mirar ninguém, ouvistes?
- Olha-m’esta toda saída da casca! Vai mas é tratar do pão para as pessoas se servirem, oh malcriada! Vá, a andar!

Dão-se abraços, ouve-se o acordeão, dança-se, bebe-se vinho e soltam-se gargalhadas.
Pelo canto do olho, quando o céu está pintado de estrelas e o farol iluminado pela lua, o velho lobo do mar espreita e faz um leve aceno com a cabeça, saudando o seu invergável companheiro.