- Pára! Não sejas tão cortante! Sê mais...
- Mais como? Como tu?
- Lá estás tu! És um bisturi, cortas muito, és demasiado exacta e cortas até ao fundo. Sim... mais como eu.
- Sabes que acabaste de pintar com caneta preta onde devo cortar, não sabes?
- Pára!
- Não estarás tu sem querer a transformares-te em mim, a pedires-me para ser mais como tu para voltares a ter o teu conforto do silêncio? Esquece isso. Foi um acidente, mas aconteceu, agora és assim. Não um bisturi, mas já não és uma colher.
- Estragas tudo com a merda das palavras! Porquê? Qual é o interesse? Se eu estou a ver um lago lindo contigo, rodeado de árvores que brilham com os reflexos ondulantes da água, não quero que mo descrevas, eu estou lá. Mais que a beber palavras para tentar decifrar uma imagem, estou lá para ver e sentir. Não estragues isso com o ruído das tuas palavras!
- E então? Olho-te nos olhos e tu sentes o que te quero dizer, é isso?
- Sim.
- Olha para mim.
- Não me faças isto...
- Olha para mim! Nos meus olhos! O que é que vês?! Que bichos se passeiam na minha cabeça?
- Aranhas e escaravelhos. Devias tirar uns unicórnios e umas fadas da minha. Tens os olhos tão turvos de escuridão do som da tua boca que nada vejo. Cala-te por um ano e depois falamos.
- És uma cobarde.
- Sou uma sonhadora.
- Chama-lhe o que quiseres. Tens medo da frontalidade e nunca a enfrentarás porque tens medo de "falar" com ela.
- Tenho o meu tipo de frontalidade.
- A sério? Há mais que um tipo? Genial! Quero ouvir! Ou vais debitar-me mais informação ocular?
- Guardo o mais importante para mim.
- Mas estás a partilhar isso comigo, e agora? És menos mística e mais comum por isso? Foges da vulgaridade como o diabo da cruz. Com isso tornas-te vulgar.
- Eu sei que sou vulgar.
- Não, tu não te julgas vulgar, só o dizes para eu te contrariar, como uma gorda que diz que ganhou uns quilos na esperança de ouvir um mentiroso "estás óptima" para servir de almofada para o ego. Trata de contornar a tua vulgaridade de outra forma. Falar com os olhos até um cão sabe para pedir comida ao dono. És mais que isso, suponho.
- Não te posso pedir para seres sensível e entenderes o que não digo através da linguagem do meu corpo ou dos meus olhos. Quando dizes que as flores do Renoir ou o céu do Van Gogh são, e passo a citar "borrões perfeitamente exequíveis para um comum mortal", eu sinto-me tão frustrada ao teu lado como uma testemunha de Jeová casada com um muçulmano.
- Achas que te quero declarar guerra?
- Contigo sinto-me constantemente num bunker, a tentar sobreviver a bombardeamentos.
- E se eu te disser que eu sou tu?
***
Abre-se a porta do quarto desarrumado deixando entrar um rapaz de pernas finas, calções, óculos para ver ao longe, aparelho, cabelo e cara suados de um possível jogo de futebol, com uma mochila às costas. Analisa o quarto e fixa os olhos no centro:
- Porque é que estás sentada em frente ao espelho?