Londres 1907
“Lá vai o raio do miúdo outra vez armado em esperto a tentar
levar-me a carne seca!”
De trás de uma banca de carne, feita de caixotes e velhas
tábuas de madeira, salta um homem alto, de meia idade com cabelo cinzento em
forma de arco mostrando uma careca, nariz adunco e uma pança de cerveja em
formação. Corria atrás dum gaiato conhecido por todos os vendedores da zona.
Tratava-se duma criança pobre que por sorte tinha muito jeito naquilo que fazia:
roubar, vender segredos ouvidos no confessionário, ou receber subornos para não
o fazer. Lá que o miúdo era esperto, era; agora, nenhum dos assaltados se
preocupava se o estômago do miúdo estava apertado ou recheado, criança ou
adulto, tanto faz, se rouba, ou leva como um homem, ou é preso (depois de
apanhar uma coça valente), e se os delitos forem em demasia, morre com um
cutelo na nuca ou coisa que valha.
Depois de duas semanas intensivas a tirar lucros ao homem
com uma careca no topo da cabeça, este decide colocar alguém a trabalhar na sua
banca para se dedicar a perseguir o miúdo loiro sujo, ranhoso, de chapéu verde
seco.
Com a sua bata manchada de sangue encosta-se a uma coluna de
pedra dumas arcadas, assustando duas donzelas que se passeiam pelas ruas, que
soltam um “Oh!” com as mãos enluvadas tapando a boca (uma delas fazendo cair a
sua sombra rendada). O rapaz apercebe-se do alarido quando gira o pescoço, e
como está em constante alerta, em caso de dúvida decide correr não vá alguém
pedir-lhe o pão ou o chouriço de volta, ou pior.
O vendedor de carne corre atrás do rapaz pelas ruas sujas e
lamacentas da chuva.
Passa duas ruas, vira à esquerda e vê o rapaz entrar num
bordel com duas prostitutas à porta que lhe berram algo num tom irritado. Ao
passar pela porta as duas fazem a lengalenga do costume:
- Que homem tão jeitoso por estas bandas. Está com uma cara
chateada, não quer levantar os ânimos em cinco minutos ali atrás? – diz uma delas
mostrando um sorriso de pérolas amarelas e castanhas.
Ignorando com alguma dificuldade uma proposta tão tentadora
o homem entra e pergunta a uma mulher gorda e velha sentada num cadeirão
cor-de-vinho, se vira um rapaz novo de chapéu verde entrar. A mulher aponta o
dedo para uma cortina velha de veludo. Cerrando os punhos e rangendo o queixo
de raiva, o homem atravessa o as tábuas de madeira em passo martelado, agarra o
tecido velho e puxa para o lado entrando numa divisão adornada de véus, a
cheirar a corpo e fluidos. Deitados numa cama, está um homem e uma mulher
deslavada que com ar de enfado diz:
- Sai daqui oh carniceiro, põe-te na fila que este ainda nem
começou.
Confuso o homem perscruta o quarto, com uma das sobrancelhas
farfalhudas levantadas. Desconcentra-se quando leva com uma pedra na cabeça, volta-se, e
vê de novo o miúdo, desta vez a rir-se a fazer caretas. O talhante, cego de irritação corre de braços no ar, e quando
está a sair do bordel, tropeça numa tábua de madeira colocada pelo rapaz. No
chão, meio atordoado, é cercado por um bando de crianças e adolescentes pobres.
Do meio deles sai o nosso herói com um grande bife na mão:
- Toma lá oh gordo, que quem manda aqui sou eu! – dito isto,
arregaça a manga e dá uma estalada na cara do homem com o bife. Gargalhadas da
velha, das prostitutas, dos miúdos, e mal o homem inspira com mais força para
se levantar, correm todos gritando insultos infantis de longe.