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04
Lá longe, de onde vêm as fábulas, onde o mar beija
raivosamente a terra, onde o vento canta com mil vozes perdidas no tempo, onde
as gotas de água dispersas no ar imitam a neve branca. Lá naquele sítio que
guia os marinheiros, sentado num imperial banco de rocha, ergue-se o invergável
farol habitado por um velho lobo do mar.
Alto, seco, de cabelo branco-alvo farto e ondulado, com um
olhar intimidante que brilha como duas safiras; é como um deus depois da
tempestade para os navios perdidos. Sempre com um pequeno barco atracado junto
do rochedo, rema em marcha de socorro, quando sente urgência no seu nobre
coração.
É um homem duro, valente, taciturno, ríspido, mas
bem-disposto. No seu âmago vive a tristeza de quem
perdeu tudo o que tinha sem justa causa, mas tem a coragem de encarar a vida sempre
com um sorriso.
A sua mulher morreu a dar à luz a uma pequena flor chamada
Mar. Com apenas uns dias, o seu débil corpo sem mãe soçobrou numa onda que quase
engoliu o velho farol.
Com as mãos nos bolsos, recebe o vento que enche a sua
roupa e as rugas da sua pele de sal. De peito aberto contra o mar ufano, que
mostra a sua bravura plenipotenciária em rombos constantes, recorda um momento
de ternura com a sua mulher. Fecha os olhos e imagina a sua filha já criança,
perfeita e incólume, com uma boneca nos braços a sorrir para ele – “anda, vamos
jogar à apanhada!”. Encosta-se ao parapeito do topo do farol à espera de uma
onda. Num gesto, agarra as gotas de água que trepam mais alto da rebentação e
diz – Apanhei-te! – sorrindo.
Já sentiu raiva e ódio ao mar, mas com a idade foi
perdendo esses sentimentos dando lugar ao respeito e à compreensão das
vicissitudes da vida e à força da natureza.
Na aldeia todos os o olham com estima e consideração. Não
é, pois, com espanto que é recebido com sorrisos e braços abertos ao subir a
colina, banhado pelos últimos raios de sol depois da tempestade, segurando três
peixes graúdos pescados por si. É noite de festa na aldeia, e todos contribuem
com o que podem para dar graças à vida.
A filha da padeira deita um olhar lânguido e apaixonado
ao velho lobo altivo. Sendo o seu suspiro incurável interrompido por uma
cotovelada da mãe risonha:
- Oh filha, pod’esperar até ao final das obras da Santa Engrácia
que ele não vai olhar para ti dessa maneira.
Irritada a rapariga, meia na brincadeira responde de
nariz empinado:
- Está calada oh pacóvia, qu’eu cá não estava a mirar
ninguém, ouvistes?
- Olha-m’esta toda saída da casca! Vai mas é tratar do
pão para as pessoas se servirem, oh malcriada! Vá, a andar!
Dão-se abraços, ouve-se o acordeão, dança-se, bebe-se
vinho e soltam-se gargalhadas.
Pelo canto do olho, quando o céu está pintado de estrelas
e o farol iluminado pela lua, o velho lobo do mar espreita e faz um leve aceno
com a cabeça, saudando o seu invergável companheiro.